Um breve ensaio dos
anos '80, apresentado como aula no curso Temas De Literatura Hispano-Americana
Contemporânea, no Instituto Cultural Brasil-Argentina (Rio de Janeiro),
e publicado na coletânea de mesmo título. A presente versão
corresponde ao texto integral do estudo realizado numa das disciplinas do
Doutorado (Letras-UFRJ, 1986), atualizada de acordo com minha
perspectiva analítica do momento.
por
Maria A. Silva
INTRODUÇÃO
Terra Nostra é obra singular na carreira literária
de Carlos Fuentes, que deve grande parte de seu sucesso a sua extraordinária
capacidade de concisão e precisão.
Não
seria absurdo aproximá-lo a Borges. Sem dúvida, assim como o colega argentino,
Fuentes revela-se um mestre da narrativa breve. Nada é supérfluo em seus
escritos, nem mesmo em seus contos mais extensos. No entanto, por
estabelecer múltiplas relações intertextuais e simbólicas com referenciais
históricos e culturais, a obra de Fuentes acaba por constituir-se como uma
espécie de "negativo" da criação borgesiana, mais contida em seu
próprio universo imaginativo.
Este
é o caso de Terra
Nostra, que já foi classificado como o mais ambicioso dos romances
mexicanos.[1]
Após seis anos de incessante pesquisa e de um trabalho desgastante, foi
finalmente publicado em 1975. "Romance
da memória da imaginação",[2] é a soma da história
ocidental que, nas palavras de Fuentes, condensa "fábulas, crônicas dessa
terra nossa que nasce no Levante mediterrâneo e termina no planalto
mexicano".[3] Mas, ainda segundo o autor, trata-se de uma
mesma história em suas possíveis permutações, eco da memória da história
anterior e da que seguirá.
O
passado, segundo Fuentes, não é uma categoria fechada, concluída, porque nunca
consegue cumprir totalmente suas possibilidades. Na vasta cenografia invertida
deste romance, por onde circulam personagens de uma intertextualidade pujante -
histórica, mítica e literária -, Fuentes procura a memória do que o mundo
poderia ter sido e não foi.
Em
Terra Nostra,
Fuentes retoma seus "fantasmas", suas obsessões: a dinâmica
vida-morte-vida, o erotismo sagrado e profano, o jogo dos duplos. Mas é
substancialmente através do agenciamento simbólico que o autor alcança seu
objetivo: a hiperdimensão espaço-temporal. Sendo independente do histórico, o
simbólico "não somente
não o substitui, como tende a arraiga-lo ao real".[4] O
simbolismo acrescenta
um novo valor a um objeto ou a uma ação, sem atentar, por isso, contra seus
valores próprios e imediatos ou "históricos"; ao contrário: ao
aplicar-se a um objeto ou ação, converte-os em fatos "abertos". "Multiplicidade na unidade",
Terra Nostra é
uma reescritura da História que perdeu sua imagem: "Imago mundi nova, imago nulla".[5]
PARA UMA LEITURA DO SIMBÓLICO
Ritmo analógico e imagem arquetípica
Em
termos gerais, o símbolo é considerado como uma "condensação expressiva e
precisa" que corresponde, por sua essência, ao mundo interior (intensivo e
qualitativo) em contraposição ao exterior (extensivo e quantitativo) (Diel).[6]
Mircea Eliade,[7]
contudo, atribui ao símbolo a missão de abolir os limites do
"fragmento" que é o homem, para integrá-lo em unidades mais amplas,
como a sociedade, a cultura e o universo. Assim, reveste-se o símbolo de uma
qualidade unificadora:
permite a passagem e a circulação de um nível a outro, integrando planos (da
realidade) sem fundi-los ou destruí-los, mas sim ordenando-os num sistema. É
justamente nesse parentesco essencial entre um e outro processo, entre um e
outro objeto, enfim, entre um e outro plano da realidade, que o símbolo vê-se
dotado de um ritmo analógico.
Ao
contrário dos psicólogos - os quais vêem no símbolo uma realidade anímica que
se projeta sobre a natureza -, os orientalistas e os esotéricos fundamentam o
simbolismo na equação inquebrantável macrocosmo » microcosmo. Com esta mesma base conceitual,
Para Jung, por exemplo, o arquétipo tende a explicar o mundo pelo
homem: não se trata de figuras ou seres objetivos, mas sim de imagens
contidas na alma humana, no inconsciente. Assim considerado, o
arquétipo torna-se, em primeiro lugar, uma epifania, o aparecimento do latente através
da visão, do sonho, da fantasia e do mito. Portanto, para Jung, a imagem
arquetípica refere-se aos símbolos universais constantes e eficazes.
Há
um reino intermediário entre a unidade da alma e sua solidão (res cogitans) e a
multiplicidade do universo (res
extensa) (Descartes)[8] e esse reino é a representação do mundo na
alma e da alma no mundo: o "lugar" do ´simbólico nas vias preparadas
dos arquétipos.
Conjunções e disjunções
O agenciamento simbólico em Terra Nostra opera-se essencialmente a partir do eixo macrocosmo = microcosmo. Para reescrever a História ocidental, Fuentes amplia o espaço restrito (geo-cultural) - o Mare Nostrum -, alterando, concomitantemente, a dimensão temporal.
Felipe II é a Espanha cristã em seu Absolutismo político e religioso: a vida anseia pela morte. Do outro lado, o Novo Mundo, o Paraíso a ser recuperado: o mundo pré-hispânico com seus mitos e rituais, um mundo de crenças e costumes que logo seria corrompido pela "malícia" da lei e pelo exacerbado individualismo espanhol; mudo que, pela morte, mantém a vida.
O "Outro mundo" - terceira parte do romance - é a síntese. Para ele convergem todos os símbolos e arquétipos disseminados nas duas primeiras partes da obra. O número 3 é, por si só, altamente simbólico: apresenta a síntese espiritual, ao mesmo tempo fórmula de cada um dos mundos criados e resolução do conjunto instaurado pelo dualismo.[9] Hemiciclo: nascimento, zênite, ocaso. Neste agenciamento destacam-se três arquétipos que, renovando simbolicamente suas raízes históricas, antropológicas e literárias, se inter-relacionam e, por vezes, se equivalem: o Rei, Don Juan e o Andrógino.
O Rei
O Felipe II que nos apresenta Fuentes em Terra Nostra funde todas as percepções históricas que se formaram em torno da enigmática figura do monarca espanhol. Filho de Carlos I e Isabel de Portugal, já aos dezesseis anos Felipe recordava muito a seu pai fisicamente: baixo, de compleição delicada, cabelos e barba louros, rosto de cor fria e pálida, grandes olhos azuis, nariz retilíneo e lábios demasiadamente grossos; o inferior, assim como a mandíbula, levava a marca originária dos Habsburgo. Vestia-se com simplicidade e, a partir de 1568 - ano do falecimento de seu primogênito -, passaria a ser visto invariavelmente de negro. Para uns, "Braço Direito da Cristandade", rei justo, que procurava depositar os encargos do governo em mãos de pessoas idôneas e fugir do favoritismo, vivendo com grande humildade. Para outros -estrangeiros, principalmente -, o "Demônio do Meio-Dia", político déspota, tétrico, fanático. Era laborioso, sem dúvida, mas também pessimista e desconfiado. Pelo cuidado e a lentidão com que examinava os assuntos do reino, recebeu de seus contemporâneos o epíteto de Prudente. Porém, sua irresolução nos temas mais graves ocasionavam atrasos que favoreciam a seus inimigos.[10]
Segundo Cirlot,[11] o Rei simboliza, no sentido mais abstrato e geral, o homem universal arquetípico. Surge como princípio reinante ou reitor, a consciência suprema, a virtude do juízo e do autodomínio. Associa-se à imortalidade e aos heróis, mantendo, ainda, traços de pai e messias.
Em Terra Nostra, o arquétipo-Rei surge através de um agenciamento simbólico negativo. Felipe encarna o "Rei doente" - de Parsifal -,[12] o herói afetado pela esterilidade espiritual.
Encerrado no Escorial como Astério (o Minotauro) em seu labirinto, Felipe percorre, na verdade, os meandros de seu "palácio interior", repleto de câmaras secretas (inconsciente). Enquanto centro recôndito, o palácio representa o motor imóvel, o avanço-retrocesso que, afinal, caracteriza a personalidade do monarca. Felipe se configura como a estaticidade que anseia por se transformar em moto continuo. A escada que manda construir - eternamente inconclusa - acena à possibilidade de ascensão: subir, para Felipe, poderia significar um processo espiritual e evolutivo, a ruptura de nível que permitiria a superação da passividade e a germinação da virtude.
No entanto, depara-se com o espelho:[13] autocontemplação (Narciso), mas também reflexo do universo (Eco); símbolo da imaginação, mas, ao mesmo tempo, da consciência.[14] A simbologia do espelho é ambivalente: reproduz imagens mas, igualmente, de certa forma, as contém e absorve, na dialética espelho-ausente / espelho-ocupado. É símbolo da multiplicidade da alma, da mobilidade e da adaptação. Contudo, a subida revela a Felipe um percurso inverso: uma viagem "a la semilla", onde morte e vida se fundem.
Em seu espelho e fora dele, Felipe se opõe ao Cristo do quadro italiano, de "ojos sensuales" que "miran a los hombres desnudos y miran demasiado bajo" (p. 90). No quadro, "falta algo y sobra algo": a cabeça não está circundada pelo halo tradicional e os olhos não olham para o céu, apesar de "la mano admonitoria y el dedo índice" apontarem nesta direção.[15] Para Felipe, o Cristo do quadro é mais humano do que deveria ser. Obcecado pelas ideias de pecado e mortificação, não consegue compreender essa imagem sagrada incrustrada no profano. Transformado num homem comum, o Messias encontra-se inserido numa paródia do Paraíso - a praça e o jardim - e não na cruz - derivação dramática, inversão da árvore da vida paradisíaca, em seu sentido agônico de luta e de instrumento de martírio -, esse mesmo sinal que Felipe leva inscrito na roupa que lhe cobre o corpo, estigma de purgação. O Cristo do quadro, em sua atitude ambígua, relega a outro plano as aspirações divinas para alcançar, pelo corpo, a graça espiritual. Esse Cristo "sin luz" e "sin aureola" indica que o Céu é uma abstração inútil.
Don Juan
Em Terra Nostra acentua-se o traço rebelde do arquétipo donjuanesco: o "amante insaciável" que se entrega aos prazeres do corpo, rompendo regras de conduta, assemelha-se ao Cristo-homem do quadro italiano, visto por Felipe não como o "filho de Deus", mas sim como "incitador político" e "revolucionário".
O Don Juan de Fuentes constitui-se como versão do mito edipiano: nasce da Rainha, sua própria amante. Ao contemplar-se no escuro mármore-espelho (como as turvas e sombrias águas das profundezas abissais), o jovem que havia sido antes encontra uma imagem de mulher. Don Juan nasce do reflexo de uma revolta: a da Rainha, aprisionada no molde de conveniências e preconceitos de uma sociedade que entendeu como máximo pecado o da carne.[16]
Rei e Rainha, juntos, formam a imagem perfeita da hierogamia, da união do céu e da terra; conjunção espiritual que se produz, no dinal do processo de individuação, pela união harmoniosa da consciência e do inconsciente. Felipe, aferrado a um absolutismo que extrapola a dimensão política, instaurando-se, impiedosamente, em sua vida particular, isola-se da companheira. Isabel não poderia ser sua amante, por imposições morais; porém, não consegue nem mesmo ser apenas sua esposa: nem seus corpos nem suas almas se fundem. Ambos emanam esterilidade.
A rainha sonha com o Novo Mundo enquanto possibilidade de liberação, essa mesma liberação que seu Don Juan faz desabrochar em cada novo corpo tocado. Don Juan é a multiplicidade que se opõe à unidade centralizadora, se esta se desenha como opressora e castradora (o Absolutismo / Poder, a Igreja / Religião cristã).
Felipe debate-se entre os dogmas cristãos e as seitas adamitas, as quais, em suas orgias eucarísticas, transformam cada corpo em altar de Cristo e cada junção carnal em comunhão salvadora (p. 93). Entre esses dois pólos, ecoam as palavras de Ludovico:
"Si alguien dice que la formación del cuerpo humano es obra del demonio y que las concepciones en los senos maternos son producto del trabajo diabólico, anatema, anatema, anatema sea" (p. 89)
Don Juan é o "anjo-demônio": sobrevive como consciência acusadora dentro do subconsciente do culpado.[17]
O Andrógino
Segundo Platão, na androginia o homem revela-se como figura esférica, como fórmula da totalidade. O andrógino integra todos os pares de opostos, todos os contrários. Representa a junção não apenas de dois sexos, mas também de duas personalidades. É o ponto no qual se anula a dualização:onde Geminis - o duplo separado, como no espelho - se torna Rebis - a fusão do duplo.[18]
O andrógino se associa, em Terra Nostra, ao mito do nascimento. Na verdade, é bem do que isso: é parte integrante de um fusionismo múltiplo. Em 31 de dezembro de 1999, o mito escatológico é também cosmogônico. O frio sol que passa a brilhar nos céus de Paris revela a passagem do elemento masculino a feminino - o sol é agora como a lua -, o que representa a volta às origens, ao início primordial.
A união sexual de Polo e Celestina é a legitimação do prazer, que anula a repressão política e religiosa - "No sonaron doce campanadas en las iglesias de París [...]" (p. 783). Com eles reescreve-se o Gênesis: nesta nova história do mundo, a serpente deixa de simbolizar as tentações, a sedução da força pela matéria, para refletir a sabedoria abissal, a força vital que regula os nascimentos e renascimentos, a fonte da vida e da imortalidade.[19]
A Celestina-Eva - a "puta vieja" primordial - liberta-se do estigma bíblico que a condenou a ser vista como o caminho, sinuoso como a serpente, por onde desliza o mal. O andrógino nascido da fusão de Polo-Celestina é a esperança do começo de um novo mundo, do qual Paris - amálgama de culturas, "fuente de toda sabiduría y manantial de las escrituras divinas" - é a forma embrionária.
Paródia demoníaca donjuanesca do casamento,[20] o hermafroditismo de Polo-Celestina oferece a imagem erótica da dinâmica a morte-vida "como um lujo inagotable y devorador" (p. 79)
CONCLUSÕES
Para Fuentes, Terra Nostra não é apenas a reescritura de uma História em suas possíveis permutações, mas também um feixe de opções narrativas que ocorrem dentro de um campo de possibilidades: o romance, como sistema de forças recíprocas e não como centro de uma casualidade narrativa.[21]
Pertinente, aqui, o símbolo-máscara: a ambiguidade do que se produz no momento em que algo se modifica, transformando-a em outra coisa, sem deixar de ser o que era. Sob cada máscara opera-se uma transfiguração.[22]
Uma "tela o una máscara de plumas rojas, amarillas, verdes, azules; y en el lugar de la boca, un círculo de arañas" (p. 27); "um círculo negro irradiando de él zonas de diversos colores" (´p. 98). A aranha e sua capacidade criadora, destruindo e construindo um centro num sacrifício contínuo, que enovela uma vida antiga para fiar outra nova: inversão e equilíbrio.[23] É este, afinal, o percurso inesgotável de toda a obra de Carlos Fuentes.
BIBLIOGRAFIA
CIRLOT, Juan-Eduardo. Diccionario de símbolos. Trad. Ruben Eduardo Ferreira Frias. São Paulo, Moraes, 1984
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo, Cultrix, 1973
FUENTES, Carlos. Terra mostra. 1 ed. Madrid, Seix Barral, 1977.
GARCÍA FLORES, Margarita. Carlos Fuentes anuncia el futuro. La onda. Xerox sem indicação de imprenta.
SAENZ-ALONSO, Mercedes. Don Juan y el donjuanismo. Madrid, Guadarrama, 1969
TERRERO, José. Historia de España. Barcelona, Sopena, 1977
NOTAS
[1] GARCÍA FLORES
[2] Ibidem
[3] Ibidem
[4] CIRLOT, J.E. (1984), Simbolismo e historicidade, p. 11
[5] Ibidem, p. 10
[6] Ibidem, Noções sobre os símbolos, p. 25
[7] Ibidem, p. 27
[8] Ibidem, p. 31
[9] Ibidem, p. 413
[10] TERRERO, J. (1977), Reinado de Felipe II, p. 267-268
[11] CIRLOT, J.-E. (1984), p. 493-494
[12] Ibidem, p. 494
[13] Paralelismo com o mito de Quetzalcóatl presente na peça teatral Todos los gatos son pardos, publicada pelo autor em 1970. Cfr. minha análise em http://visamericas.blogspot.com.br/2014/03/o-sentimento-tragico-de-ser-mexicano_11.html.
[14] Ibidem, p. 239
[15] O mosaico da catedral de Orvieto, intitulado "O Batismo de Cristo", parece ser este "quadro" repetidas vezes mencionado no romance.
Duomo da Catedral de Orvieto Batismo de Cristo |
Contudo, nele nenhuma das mãos de Jesus aparece com o dedo erguido, em atitude admoestatória, como afirma o trecho da obra aqui citado. Inclino-me a acreditar que Fuentes, em outro de seus jogos intertextuais, tenha associado esta imagem a outra, de um dos quadros do pintor italiano Bartolomeo Cavarozzi, que colaborou na decoração do Escorial em 1617. Neste sim, um Cristo sensual simula o gesto de assinalar o Céu, sinal tradicionalmente presente em suas representações pictóricas.
Ceia em Emaús, por Bartolomeo Cavarozzi |
Por último, cabe-me ainda associar a menção a um terceiro quadro: o "Cristo Abençoando", de Rafael Sanzio, da escola florentina, no qual a languidez do homem-Jesus transborda sensualidade em seu grau mais elevado.
Cristo Abençoando, por Rafael Sânzio |
[16] SAENZ-ALONSO, M. (1969), Psicología española de Don Juan, p. 47
[17] Ibidem, "El ángel del demônio", de Suzanne Lilar, p. 220
[18] CIRLOT, J.-E. (1984), p. 76
[19] Ibidem, p. 521-522
[20] FRYE, N. (1973), Teoria do sentido arquetípico (2): Imagens demoníacas, p. 150
[21] GARCÍA FLORES
[22] CIRLOT, J.-E. (1984), p. 375
[23] Ibidem, p. 91.
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